Zero Hora - 10 de fevereiro de 2012
ARTIGOS
Direito individual e egoísmo, por JAYME EDUARDO MACHADO*
Há um aceso debate em torno da restrição legal de curtir um aperitivo e sair por aí dirigindo. E o dogma jurídico mais disponível para afastar a intrusão da lei em nossa intimidade é o de que a autoridade do Direito só intervém em face de uma relação interpessoal. Algo que o “Direito divino” – se bem lembrarmos – já havia feito no Paraíso, de forma plenamente justificada, e em tema muito mais importante. Pois se Adão tivesse ficado na sua em vez de puxar assunto com Eva acerca da maçã, Deus não haveria de se intrometer, porque seria assunto pessoal deles. Intrometeu-se porque, responsável pela Criação, conhecia bem suas criaturas e por isso enxergou longe, advertindo para as consequências de “comer a fruta”. Coisa privada do casal, diríamos, mas só na aparência. Basta ver que, em decorrência desse incidente – bem que Deus alertou! –, só a nossa geração já produziu 7 bilhões de criaturas.
Do mito à analogia com a realidade mais prosaica, é de se considerar que beber é ato pessoal, resultado de uma decisão individual, que lei alguma pode impedir. Assim, qualquer um está livre para tomar seu inocente pilequinho em casa, na rua e até dentro de seu automóvel, desde que estacionado. Mas, se ligar a ignição, ao entrar na corrente de trânsito estará aumentando, em proporções imprevisíveis, o risco inerente à condução de máquinas disputando espaço em meio a pessoas, e então a interpessoalidade – que é disso que o Direito gosta – justifica a intervenção da autoridade (da lei).
Tudo se resume em que ela deva contribuir, prevenindo e reprimindo, para diminuir o risco à segurança e à vida. De outra parte, criminalizar o ato de dirigir sob o efeito de um inocente chopinho parece mesmo uma violência intromissiva. Mas, olhando a questão sob um ângulo menos técnico-jurídico, percebe-se que a severidade de uma lei que criminaliza o agente gerador de um risco potencial, com o só objetivo de prevenir a ocorrência de crimes muito mais graves lá adiante, fere menos um direito individual e muito mais o egoísmo do agente, pois a só sustentação do “seu” direito ignora o dos outros.
E é por não existir qualquer consenso jurídico em torno do que se deva fazer e do que se possa fazer que é indispensável um trabalho paralelo de conscientização, que só se alcança com educação. Muito mais profundo, duradouro e eficaz do que a necessária prevenção e a exemplar repressão pela via legal. E isso leva o tempo de gerações. Como levou para a conscientização ambiental de que matar passarinho é crime, e quase todos os das gerações mais antigas hoje seriam criminosos, mas jamais serão reincidentes, porque conscientizados. É da busca dessa conscientização que trata projeto de lei de autoria do senador Eunício Oliveira (PMDB-CE) recentemente aprovado na Comissão de Constituição e Justiça do Senado que impede o desvio de recursos obtidos com as multas, obrigando o Estado a utilizá-los exclusivamente em educação para o trânsito e sinalização das vias. E pronto, nenhuma outra destinação.
Pelo menos enquanto não se sedimentar a certeza de que álcool em qualquer quantidade é prejudicial ao trânsito, a severidade da lei parece necessária e o sacrifício de alguns prazeres, indispensável. Quem não viveu a época em que era possível pegar o carro e sair meio “alto” da festinha para circular despreocupadamente, tão colado à namoradinha que mais pareciam, aos olhos dos de trás, um motorista de duas cabeças – pois a intromissão do cinto de segurança ainda não nos havia afastado da intimidade –, perdeu a vez. Percebe-se que pouco ou nada restou que não seja interpessoal, que possamos realizar por nossa conta e risco exclusivo sem afetar os outros. A coletividade e o direito que para ela se inclina adormecem o individual, mas, quem sabe, estejam despertando no indivíduo menos egoísmo e mais solidariedade.
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