“Apanhar-se em contradição, o sujeito que tem
a coragem infame de variar de opinião, é o prazer dos prazeres. Se os deuses
houvessem reservado como privilégio divino essa faculdade, cada consumidor
brasileiro de papel seria um Prometeu absorto em escalar as nuvens, não à
procura do céu, mas em busca da prenda celeste de escarafunchar divergências de ontem para o hoje nas
opiniões alheias. Quando se topa, nas letras remexidas, com um desses achados
preciosos, é dia de festa, ilumina-se a casa, leva à boca o megafone e se
anuncia ao longe que o adversário está esmagado.
Não há entretanto inutilidade mais inútil. Os
homens de siso e consciência riem destas malícias. Só a ignorância ou a
imbecilidade não se contradizem; porque não são capazes de pensar.
Só a vulgaridade e a esterilidade não variam;
porque são a eterna repetição de si mesmas. Só os sábios baratos e os néscios
caros podem ter o curso das suas ideias igual e uniforme como os livros de uma
casa de comércio; porque nunca escreveram nada seu, nem conceberam nada novo.
A sinceridade, a razão, o trabalho, o saber
não cessam de mudar: não há outra maneira humana de acertar e produzir. Varia a
fé; varia a ciência; varia a lei; varia a justiça; varia a moral; varia a
própria verdade; varia nos seus aspectos a criação mesma; tudo, salvo a
intuição de Deus e a noção dos seus divinos mandamentos, tudo varia. Só não
variam o obcecado, ou o fóssil, o ignorante ou o néscio, o maníaco ou o
presunçoso.
Pode ser que no miolo de um compilador caiba
inteiro o imenso universo jurídico, petrificado, imutabilizado e catalogado nas
suas regras, nas suas hipóteses e nos
seus resultados. Tirante, porém, essas cabeças privilegiadas, tudo no direito é
mudar constantemente; porque o direito resulta da evolução, e a envolver
consiste no variar.
Há os grandes princípios, que formam a
estrutura permanente desse mundo; mas, na vasta atmosfera de ideias que o
envolve, nas grande correntes dos sistemas, que o sulcam, nos maravilhosos
fenômenos criadores, que o animam, em todas as organizações que o povoam, em
todos os resultados que o enriquecem, tudo se transmuta e renova e transforma
dia a dia.
De dia em dia esses grandes princípios
envolvem, progridem e cambiam, na interpretação, aplicação e reprodução, que
lhes constituem a vida real. Não há
decretos, que se não revoguem, nem decisões, que se não alterem, nem sentenças,
que se não reformem, nem arestos, que se não cancelem, ou doutrinas, que não
passem, lições, que não desmereçam, axiomas, que não caduquem.
Os textos, os códigos, as constituições,
guardado o mesmo rosto e a mesma linguagem, na sua inteligência e ação
continuamente se vão modificando: significam hoje o contrário do que ontem
significavam; amanhã exprimirão coisa diversa da que hoje estão exprimindo; e, neste contínuo acomodar-se às exigências
das gerações sucessivas, tomam, sucessivamente, a cor das épocas, das escolas,
dos homens, que os entendem, comentam ou executam.
De sorte que, na tribuna do legislador, na
cadeira do lente, na banca do causídico, no pretório do juiz, a palavra, as
mais das vezes, não faz senão registrar as mutações e alternativas, em que
direis consistir a essência mesma de nosso pensamento e atividade.
Assim que, debaixo do céu, tudo obedece a
essa eterna lei de transmutação incessante das coisas. Se nihil sole novum, também poderíamos dizer que
nihil sub sole constans. Se todo o mundo se compõe de contradições, dessas
contradições é que resulta a harmonia do mundo.
Se das variações pode emanar o erro, sem as variações o erro não se
corrige. A boa filosofia é a de Joubert,
quando nos aconselha que, se por amor da verdade, houvermos de cair em
contradições, não vacilemos em nos expor a elas de corpo e alma. Se “a razão
nunca está em contradição consigo mesma, quando segue as suas leis”, como dizia
o honesto Julio Simon, a única espécie de contradição, de que o espírito terá
receio, é a de se empedernir no erro, quando enxerga a verdade.
O homem não está em contradição consigo
mesmo, senão quando o está com a sua natureza moral, que o ensina a
considerar-se desonrado, quando atina com a verdade, e se obceca no erro. É
assim que o nosso próprio organismo vive, mudando toda a hora, sem mudar nunca;
porque da sua identidade realmente não muda, senão quando, quebradas as suas
leis orgânicas pela doença ou pela morte, deixa de eliminar o que deve
eliminar, e absorver o que lhe convém absorver.
Mas, se neste ir e vir contínuo e nesse
incessante mudar giram todos os viventes, como todas as coisas, não haverá,
talvez, nenhum domínio da vida, em que tanto suba de ponto a instabilidade,
quanto nessas incomensuráveis regiões onde impera o direito, nas circunstâncias
que o realizam, nos elementos que o definem, nas fórmulas que o regem, nas
interpretações que o esclarecem, nas soluções que o aplicam. Por isto, não muda
somente a jurisprudência nacional, com o variar dos tribunais, não muda só a de
cada tribunal com a mudança de seus membros, senão também a de cada juiz,
muitas vezes, na mesma causa, de um a outro julgamento, e não raras com toda a
razão; pois justamente para isso é que a lei nos assegura, não só as apelações,
de uma a outra instância, mas os embargos, decididos pelo mesmo magistrado, a cuja sentença as
opomos.
Pois, se a toga do magistrado não se
deslustra, retratando-se dos seus despachos e sentenças, antes se relustra,
desdizendo-se do sentenciado ou resolvido, quando se lhe antolha claro o
engano, em que laborava, ou a injustiça, que cometeu, não compreendemos que
caiba no senso comum dar em rosto a um jurista, ou a um advogado com o repúdio
de uma opinião outrora abraçada.
E, se, como no caso, essa opinião era, não
uma tese consagrada, mas uma novidade ainda imatura, se nem se sustentara com a
tese do pleito, nem constituía argumento essencial numa demonstração, mas
apenas a auxiliava, e lhe era acessória, óbvio parece que a ‘semrazão’ dobra e
tresdobra em estranheza”.
Petrópolis, fevereiro de 1917
RUY BARBOSA
Ainda o RUY:
“O bom senso humano, em todos os tempos, tem
reconhecido não ser lícito abandonar a sorte da lei comum e dos direitos por
ela assegurados às contingências do julgamento por um só tribunal. Daí a
concepção das instâncias, dos recursos e, especialmente, das apelações,
destinadas a corrigirem, mediante segundo exame do caso em cada lide, os
vícios, omissões e nulidades do processo, os erros, abusos e injustiças da
sentença.
”Apellandi usus quam sit frequens quamque
necessarius,nemo est qui nesciat, quippe cúm iniquitatem judicantium vel imperitiam
recorrigat.”
(Fr. I D. de appellationibus, XLII I.)
Ninguém há, que não saiba, diz o fragmento do
texto de Ulpiano incorporado neste lance das Pandecas, “ninguém há, que não
saiba quão frequente e quão necessário é o uso de apelar, remédio que se criou
para corrigir a iniquidade e reparar a perícia dos julgadores”.
Desta noção de justiça rudimentar só
discrepou a grande matriz do nosso direito civil e do nosso direito judiciário,
a jurisprudência romana, em outras épocas tenebrosas como as de Calígula, que
vedou as apelações, e Nero, que as impediu (…)”.
Petrópolis, fevereiro de 1917
RUY BARBOSA