Há uma diferença entre garantismo e
impunidade. Há uma diferença entre uma Justiça que tem a função de resguardar
da sanha punitiva do estado os direitos individuais e uma Justiça que parece
talhada para não funcionar; há uma diferença entre garantir o devido processo
legal e dispor de leis que impedem o processo de chegar a seu termo; há uma
diferença, em suma, entre a virtude que garante aos viciosos o direito de se
defender e o vício que faz da virtude o instrumento privilegiado de seu
exercício. Nesta quarta-feira, Celso de Mello pode até ter sido coerente com
opiniões que andou emitindo aqui e ali sobre os embargos infringentes — jamais
ele havia tomado uma decisão de mérito a respeito, e o mesmo se diga dos outros
ministros do Supremo —, mas permite que o garantismo degenere em impunidade;
que a Justiça se torne o abrigo de malfeitores; que a maquinaria do Judiciário
seja usada contra o interesse público; que a virtude sirva, enfim, de cortesã
do vício. As pessoas de bem só podem lamentar: pelos brasileiros, pelo Brasil e
até por ele próprio.
À diferença do que disse Mello, não com estas
palavras, mas com este sentido, o tribunal dividido não estava a indicar,
então, que se fazia necessário acatar o recurso como mais um instrumento do
devido processo penal. Ao contrário! Diante de tudo o que se sabe do mensalão;
diante de todas as evidências de que uma organização criminosa tentou se
apoderar de instâncias do estado brasileiro para dar uma espécie de golpe;
diante da ousadia dos “marginais do poder”, que tiveram o desplante de
confessar um crime eleitoral para esconder outras ações dolosas, ainda mais
graves; diante de tudo isso, só havia uma saída decente: decidir em favor da
sociedade — ela, sim, roubada, enganada, espezinhada por aqueles que apostavam no
que Mello pode lhes ter dado ontem numa bandeja ornada de brocados retóricos: a
impunidade.
E que se diga de novo, com todas as letras. A
menos que os cinco ministros que recusaram os infringentes sejam ogros do
direito; a menos que os cinco ministros que disseram “não” ao expediente sejam
notáveis cretinos, incapazes de entender o ordenamento jurídico em que vivemos;
a menos que os cinco ministros que repudiaram o que lhes pareceu uma
excrescência tenham se divorciado da lei, é forçoso constatar que o caminho
seguido por Celso de Mello não era o único que se conciliava com as leis. Não
só não era como se pode dizer, sem medo de errar, que ele escolheu o pior.
Alinhou-se com o mal maior; apelou a um sentimento que costumo chamar de
“concupiscência da virtude”. No seu caso, consiste em demonstrar que, embora
tenha sido um dos mais duros retóricos contra os mensaleiros e seus crimes;
embora devamos entender que ele repudia de modo absoluto aquelas práticas
nefastas, o dever do juiz o obrigaria a se alinhar com um valor ainda mais
geral, que ele chamou de “o devido processo penal”. Estariam, então, os outros
cinco a advogar um tribunal de exceção? Ora…
Em sua retórica caudalosa — que, desta feita,
andou atropelando a história —, ignorou, por exemplo, o voto muito técnico e
muito claro da ministra Carmen Lúcia. Então o sistema penal brasileiro tem
agora duas categorias de réus nos tribunais superiores: os que, processados
pelo STJ, não têm direito aos embargos infringentes e os outros, os do STF, que
podem contar com esse recurso? Nesse caso, sim, o Supremo se transforma, então,
num “foro privilegiado”, epíteto que sempre recusei porque entendo que as ações
criminais de competência originária dessas cortes não buscavam proteger pessoas
apenas, mas também seus respectivos cargos, que são funções de estado. O
ministro preferiu passar longe da questão para que não tivesse, suponho, de se
mostrar apaziguado com essa esquizofrenia.
O
que aconteceu?
Não especulo sobre motivações subjetivas nem
estou inferindo nada nas entrelinhas — como sabem, nunca sou oblíquo, mas me
parece que um mau gênio andou se acercando de Celso de Mello, sempre tão
prudente, sempre tão suave nos modos, mesmo quando forte nas palavras. Seu
vitupério contra a pressão das ruas, contra a irracionalidade das massas,
contra o clamor das multidões se deu fora do tom, além do razoável, muitos
decibéis retóricos acima do que está a nos mostrar a própria realidade.
A
que pressão se referia?
Pressionam os ministros do Supremo, estes
sim, aqueles que, sem temor nem cuidado, financiados com dinheiro público, usam
a Internet, as redes sociais e veículos que só lembram o jornalismo porque são
a sua caricatura para satanizar ministros do STF, a imprensa independente,
políticos da oposição e qualquer força viva que ouse resistir aos ditames do
partido do poder. Pressionam os ministros do Supremo, estes sim, os comandantes
do PT, que têm a ousadia de se reunir para desmoralizar o tribunal. Pressionam
o Supremo, estes sim, os condenados que saem por aí em caravanas, convocando a
formação de correntes de opinião para vituperar contra a Justiça.
Contra
esses, Celso de Mello não tinha e não tem nada a dizer? Os
que lotaram sua caixa de e-mails com mensagens, cobrando que recusasse os
embargos infringentes, estavam apenas exercendo um direito, senhor ministro!
Com que então o relator da causa que pediu, e conseguiu, a liberação das
marchas da maconha demonstra agora clara irritação com aqueles que se
manifestam em favor de uma Justiça mais célere, que puna, enfim, um bando de
malfeitores que roubaram a República?
No Brasil, ministro Celso de Mello, o povo
que pede justiça não pode ser tomado como morada da irracionalidade, como
sugeriu Vossa Excelência, em oposição ao direito, que seria, então, a sede da
racionalidade e do equilíbrio. Não quando esse povo, carente de muita coisa, é,
antes de mais nada, carente de justiça. Não quando o direito, que deveria
assisti-lo, se torna com frequência escandalosa, um privilégio ou de classe ou
de função.
Quis o destino, e esta é mais uma ironia,
que, ao demonizar a irracionalidade das massas, Celso de Mello estivesse
abrindo as portas à impunidade de chefões do PT, o partido que se construiu
como monopolista da virtude e dos interesses das… massas. Quase nunca, ou
nunca, uso esta palavra porque nada pode ser “histórico” antes da história.
Nesse caso, no entanto, ouso dizer que Celso de Mello proferiu, sim, um voto
histórico. E história viva, porque ele se mostrará pior a cada dia.
Por Reinaldo Azevedo
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