Mediação de conflito: o policial, o fiscal e a vendedora.
Eu ganho, você ganha
por Geverson Ferrari*.
Quando ela me alcançou um copo de café,
percebi que tinha conquistado sua confiança. E pensar que naquela hora, como
normalmente ocorre, um processo criminal seria a alternativa para ela, depois
de algemada e apresentada ao Delegado de Polícia.
Os agentes poderiam escolher pelos
crimes de desobediência ou pela recusa do fornecimento de dados pessoais.
Porém, para entender melhor esta história
é preciso voltar um pouco no tempo, cerca de trinta minutos antes do café.
Maria Eugênia é o nome dela, quando a
vi pela primeira vez ela estava agarrada a uma caixa de isopor cheia de
garrafas de água mineral e em uma sacola plástica com salgadinhos embalados. Sim,
ela é uma vendedora ambulante.
Três fiscais da Secretaria Municipal
com jalecos azuis e dois policiais militares, um deles com uma arma longa de
calibre .40 a cercavam. Os fiscais exigiam a entrega da mercadoria para
apreensão e os policiais o nome da mulher para a produção da documentação e
apreensão do material.
A mulher, percebendo que iria perder
seus produtos, não queria dizer o seu nome, só dizia que queria ir embora e
levar suas mercadorias, repetindo isso várias vezes, nervosa. Convencida,
forneceu um nome inexistente aos policiais, atitude que deixou os militares
furiosos. O tom de voz se alterou, os homens também estavam ficando nervosos, vi
que a prisão seria a próxima e, para aqueles cinco homens, a única alternativa.
Só que não naquele dia.
Pedi que a mulher fosse trazida a
minha sala, ela não queria entrar, evidentemente não confiava em mim, mas insisti,
disse que poderia confiar, tive de repetir que queria ajudá-la.
Ela, então, disse que aceitaria desde
que pudesse levar seu isopor e a sacola de salgadinhos junto. Concordei.
Já na minha sala, posicionei uma
cadeira um pouco mais para o meu lado e perguntei seu nome, ela não respondeu,
apenas baixou a cabeça, falei para ela sobre a irregularidade com relação a sua
venda de mercadorias, falei que ela deveria ter um alvará e um cadastro como vendedora
autônoma. Ela foi me explicando que já tinha tentado, mas não tinha conseguido,
pois diziam que não era possível esse tipo de alvará. Respostas curtas,
ríspidas, olhando para o chão. Repetia que queria ir embora.
Sugeri uma troca, ela fornecia seu
nome e eu me comprometia em deixá-la levar a sua mercadoria. Ela concordou. Era
isso que ela queria, todos sabiam.
Chamei os fiscais e propus o acordo,
faríamos o procedimento legal e os produtos seriam devolvidos para a mulher no
mesmo ato, o que foi aceito pelos homens. Liberei os dois policiais e a viatura
para retornarem para seus postos a fim de continuarem no policiamento, coibindo
crimes.
E fui além, como Maria Eugênia
desejava obter o alvará de autônomo, liguei para o SEBRAE/RS, por telefone me
explicaram o procedimento e o endereço, com R$ 39,90 ela obteria sua
legalização, incluído o INSS.
Nessa hora, eis que ela movimenta-se em
direção a sacola, pega uma garrafa térmica e me serve um café, apesar de não
tomar café como hábito, aquele eu aceitei. E tinha um sabor delicioso.
Em seguida, telefonei para a Câmara de
Vereadores e solicitei a um vereador que mostrasse para a mulher a lei
municipal que regula a atuação de ambulantes no centro da cidade. Este, de
pronto, agendou com seu assessor a visita ao Legislativo Municipal.
Contatei com a Coordenadoria da Mulher,
que enviou uma advogada ao quartel, ela conversou com a senhora Maria Eugênia,
trocaram telefones, a advogada comprometeu-se em ajudar a fim de agilizar o
atendimento junto a Prefeitura Municipal.
Por fim, chamei os fiscais na minha
sala e falei lhes o que penso sobre a atuação dos agentes públicos, frente a
este tipo de situação.
O que penso é o seguinte: os agentes
públicos são representantes do Estado, e neste caso, envolveu representantes do
Município de Sapucaia do Sul e do Estado do Rio Grande do Sul, respectivamente,
Prefeito e Governador, eleitos pelo voto do povo, tanto povo esclarecido como povo
humilde como à senhora Maria Eugênia, para este último grupo o acesso a justiça,
no sentido amplo da palavra, infelizmente, ainda é restrito.
É preciso que os agentes públicos, em
todas as esferas, entendam que em um Estado de Direito, a pessoa deve ser o
centro da atenção. Por isso, a função dos agentes que representam o Estado na
sociedade democrática é extremamente complexa, suas ações são repletas de
responsabilidade diretas e indiretas, pois repercutem amplamente na vida das
pessoas que estão sob a regulação estatal.
E regular a convivência das pessoas, em
minha concepção, vai além da simples aplicação da lei - que me critiquem os
positivistas - regular implica em ações pró-ativas. Só algemar não basta, como
também, não seria a solução para Maria Eugênia apreensão de suas mercadorias.
Essa ação é simplória e só acarretaria mais um problema a vendedora. Exige-se
mais do que isto.
Ações pró-ativas é o mínino que
pessoas humildes esperam de nós: policiais, médicos, enfermeiros, educadores,
fiscais com poder delegado, representares políticos, dentre outros.
Para mim, o cafezinho que a senhora
Maria serviu tinha um sabor diferente, ele estava vinculado a um fazer
diferente e a um sentimento de dever cumprido, tinha um gosto de justiça
social. Naquele dia, ganhamos todos.
*1º Sargento da Brigada Militar, Bacharel em Direito, Especialista em
Segurança Pública com Cidadania e Mestrando em Sociologia.
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