RUBEM ALVES
"Crioulinha..."
"Crioulinha..."
As palavras são a carne do mundo; não podem ser
substituídas por outras, ainda que mais verdadeiras
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UMA DAS MEMÓRIAS felizes que tenho de minha infância
me leva de volta à escola. Eu estava no terceiro ano primário. Era a aula de
leitura. Não, não era aula em que líamos para a professora ouvir e corrigir. Ao
contrário, era a professora que lia para nos deliciar. Foi assim que aprendi a
amar os livros. Não aprendi com a gramática.
Dizem que os jovens não gostam de ler. Mas como
poderiam amar a leitura se não houvesse alguém que lesse para eles? Aprende-se
o prazer da leitura da mesma forma como se aprende o prazer da música: ouvindo.
A leitura da professora era música para nós.
A professora lia e nós nos sentíamos magicamente
transportados para um mundo maravilhoso, cheio de entidades encantadas. O
silêncio era total. E era uma tristeza quando a professora fechava o livro.
"O Saci", "Viagem ao Céu", "Caçadas de Pedrinho",
"Reinações de Narizinho". Esses eram os nomes de algumas das músicas
que ela interpretava. E o nome do compositor era Monteiro Lobato.
Mas agora as autoridades especializadas em descobrir
as ideologias escondidas no vão das palavras descobriram que, por detrás das
palavras inocentes, havia palavras que não podiam ser ditas. Monteiro Lobato
ensina racismo. E apresentam como prova as coisas que ele dizia da negra Tia
Anastácia...
A descoberta exigia providências. Era preciso proibir
as palavras racistas. Monteiro Lobato não mais pode frequentar as escolas...
Assustei-me. Senti-me ameaçado. Fiquei com medo de que
me descobrissem racista também. Tantas palavras proibidas eu já disse.
É preciso explicar. Naqueles tempos, tempos ainda com
cheiro da escravidão, havia um costume... As famílias negras pobres com muitos
filhos, sem recursos para sustentá-los, ofereciam às famílias abastadas,
brancas, para serem criados e para trabalhar. Assim era a vida. Foi assim na
minha casa. Veio morar conosco uma meninota de uns dez anos, a Astolfina,
apelidada de Tofa. Escrevi sobre ela no meu livro de memórias "O Velho que
Acordou Menino". Cuidou de mim, dos meus irmãos, e morou conosco até se
casar. Acontece que, ao contar sobre ela, eu usei uma palavra que fazia parte
daquele mundo: "crioulinha". Era assim que se falava porque essa era
a palavra que fazia parte daquele mundo. Imaginem que, obediente à "linguagem
politicamente correta", eu, hoje, tivesse escrito no meu livro "uma
jovem de ascendência afro"... Não. Esse não era o mundo em que a Astolfina
viveu.
As palavras são a carne do mundo. Não podem ser
substituídas por outras, ainda que mais verdadeiras, ainda que sinônimas. É
preciso dizê-las como foram ditas para que o mundo que foi fique vivo
novamente. A história se faz com palavras que faziam parte da vida. Aí, então,
se pode explicar, como nota de rodapé: "Era assim. Não é mais...".
Estou com medo de que as ditas autoridades descubram
que usei a palavra racista "crioulinha" para me referir àquilo que,
hoje, seria "uma jovem de ascendência afro".
Estou, assim, tomando minhas providências. Para que
não coloquem meu livro no "Índex" vou apagar a palavra
"crioulinha" do texto e, sempre que precisar me referir à Tofa, direi
que ela era uma governanta suíça e ruiva, uniformizada de branco e touca, para
evitar que fios de cabelo caíssem na comida... Assim, meu livro purificado do
racismo poderá frequentar as escolas...
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