O juiz dirigia sem habilitação. Foi multado, estrilou
e quis prender a fiscal. Quem ele pensa que é?
Todo juiz que se sente ofendido ao ouvir que “não é
Deus” deveria buscar uma terapia para curar a onipotência. Juízes têm a função
de julgar, mas estão muito longe de ter a prerrogativa do juízo divino. Não
estão acima do bem e do mal.
Por conhecer a fundo as leis, juízes não têm desculpa
para violar ou desrespeitar o Código Civil. Espera-se dos juízes, mais que dos
leigos, um comportamento ajuizado – é só observar a raiz do adjetivo. Juízes
podem, todavia, errar. São humanos, não são deuses.
O juiz João Carlos de Souza Correa abusa do direito de
errar. Em fevereiro de 2011, no Leblon, bairro nobre da Zona Sul do Rio de
Janeiro, ele foi parado numa blitz da Operação Lei Seca. A fiscal de trânsito
Luciana Tamburini, de 34 anos, verificou que ele não estava com sua carteira de
habilitação e que seu carro, um Land Rover, não tinha placas nem documentos.
Mandou rebocar o carro – cumprir a lei.
Em vez de se resignar por ter sido flagrado em delito,
João Carlos não gostou. Identificou-se como juiz de Direito. “Ele queria que um
tenente me desse voz de prisão”, disse Luciana. “O tenente se recusou, e o juiz
ligou para uma viatura. Os PMs tentaram me algemar e disseram que o juiz queria
que eu fosse para a delegacia. Respondi que ele queria, mas não era Deus.”
Informado pelos PMs do que Luciana dissera, João
Carlos começou a gritar e lhe deu voz de prisão. Chamou-a de “abusada”. Luciana
confirma que são comuns as “carteiradas” de poderosos, do tipo “você sabe com
quem está falando?”, mas é raro o infrator se descontrolar a esse ponto.
Ela abriu uma ação contra João Carlos por danos morais
depois de sofrer, no Detran, uma sindicância interna, sob pressão dele e de sua
mulher, para apurar seu procedimento na blitz. O desfecho na Justiça é uma ode
ao corporativismo. O desembargador José Carlos Paes inverteu a ação e condenou
Luciana a pagar R$ 5 mil de danos morais a João Carlos, por ter ofendido o réu
e “a função que ele representa para a sociedade”. A sentença, datada do último
22 de outubro, é surreal. Vale ler um trecho:
“A autora, ao abordar o réu e verificar que o mesmo
(sic) conduzia veículo desprovido de placas identificadoras e sem portar sua
carteira de habilitação, agiu com abuso de poder, ofendendo este, mesmo ciente
da relevância da função pública por ele desempenhada. Ao apregoar que o
demandado era ‘juiz, mas não Deus’, a agente de trânsito zombou do cargo por
ele ocupado. (...) Pretendia afrontar e enfrentar o magistrado que retornava de
um plantão judiciário noturno”.
Você ficou com pena de João Carlos? O que esperamos
nós ao encarar uma blitz sem carteira de motorista, sem placa e sem documento?
O embate com João Carlos assustou a mãe de Luciana, que nem queria mais
deixá-la sozinha em casa. “Quando a gente faz o que é certo, não tem por que
ter medo”, disse Luciana. O caso deverá ir agora para o Superior Tribunal de
Justiça. “Vou até o final, não me arrependo de nada.”
O juiz João Carlos não é estreante em confusões. Em
2007, como titular em Búzios, no litoral norte do Rio, tentou forçar um
transatlântico com turistas a abrir para ele as lojas do free shop. Deu voz de
prisão a uma jornalista, Elisabeth Prata, por calúnia e difamação. Ela passou
12 horas detida, foi condenada a cinco anos de cadeia e teve de provar sua
inocência. Em 2010, João Carlos foi investigado pelo Conselho Nacional de
Justiça por decisões duvidosas que envolviam disputas fundiárias e imobiliárias
na Região dos Lagos. Parece que ele pensa mesmo ser Deus.
Nas redes sociais, a história de Luciana deslanchou
uma onda de solidariedade. Uma advogada paulista, Flavia Penido, leu os autos
do processo, ficou indignada com “o show de horrores” e, mesmo sem conhecer
Luciana, abriu uma vaquinha virtual para arrecadar o valor da multa e dar a ela
apoio emocional. “A gente deveria brigar menos nas redes sociais por besteira e
canalizar essa energia para atazanar quem realmente merece ser atazanado”,
disse Flavia. Até a sexta-feira, já haviam sido coletados mais de R$ 20 mil.
Luciana ficou surpresa e feliz. Disse que doará o excedente. Contou que seu
maior desejo é ganhar a ação, sem precisar tocar no dinheiro arrecadado. Hoje
licenciada da função, Luciana aguarda nomeação na Polícia Federal. Quer ser
delegada.
Será que João Carlos sabe com quem está lidando? Com a
opinião pública.
O Brasil convive com muitas arbitrariedades
cotidianas. Cansa. É uma vida às avessas, que embaralha os conceitos, beneficia
os espertos e prejudica os honestos. Para ser excelentíssimo, é preciso impor
respeito pela integridade. Para mudar o país, não basta rezar. Um bom começo é
saber que ninguém aqui é Deus. Nem o senhor doutor João Carlos de Souza Correa.
Amém.
*Colunista da epoca.globo.com
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